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Intercâmbio Virtual Educação em um Mundo em Crise: Limites e Possibilidades frente à RIO + 20
Grupo de Trabalho de Educação
Movimento de educação e o movimento da sociedade civil
RESISTÊNCIA: NÃO À DESUMANIZAÇÃO DOS SERES HUMANOS!
Por Camilla Croso(*)
Nossa humanidade está em xeque.
No campo da educação, a teoria do capital humano pulsa forte nos lineamentos promovidos por atores com grande incidência e alcance na vida de milhões e até milhares de milhões de pessoas. A recém lançada estratégia educativa do Banco Mundial para a próxima década, de autoria do Banco, mas cujas idéias fundamentais são partilhadas por inúmeras agências de cooperação internacional, por setores de organismos das Nações Unidas e até por segmentos da sociedade civil, entre outros, assume que as pessoas são capital, que estão a serviço do crescimento econômico e que a educação é um meio fundamental para esse fim.
Recentemente, a concepção de seres humanos como capital, assumiu, talvez, a sua face mais perversa ao tratar de crianças de tenra idade. A ciência e a economia, dizem, constata que meninos e meninas de 0 a 3 anos rendem mais que qualquer outra pessoa. Que são um excelente investimento para que as nações gerem riqueza. E isso não é força de expressão de minha autoria, é como foi intitulada a primeira conferência internacional da UNESCO sobre educação e cuidados na primeira infância, que aconteceu em Moscou em 2010.
A definição de pessoas como capital nega a elas sua condição de sujeitos de direito e aniquila sua humanidade. As pessoas não são meio, são fim; não são úteis, simplesmente são. São humanas, singulares, dignas. E nessa perspectiva, a educação, como há mais de 60 anos insiste em nos lembrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos “terá por objeto o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; favorecerá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos étnicos ou religiosos”.
Há quem diga que devemos buscar dar lugar aos argumentos de custo/ benefício no discurso dos direitos humanos; que isso, de algum modo o moderniza, torna-o atual, quase o viabiliza nesta nossa modernidade. O que é preciso sublinhar nas lutas sociais que colocamos em marcha é que o paradigma do capital humano e o dos direitos humanos sãoirreconciliáveis, uma vez que têm princípios, meios e fins diferentes que levam a decisões, práticas e processo educativos antagônicos. Vale assinalar que a perspectiva de direitos põe em evidência o papel do Estado como seu garante, responsável por satisfazer interesses coletivos de uma maneira que não se submeta à lógica da taxa de retorno.
Ao paradigma do capital humano interessa uma educação que integre as pessoas ao mercado, tornando-as empregáveis, produtivas e capazes de responder aos interesses do capital e à manutenção do status quo. Este projeto “educativo” requer que sejam desenvolvidas determinadas habilidades e aptidões que atendam à referida empregabilidade; requer que os e as estudantes se tornem homogêneos para que respondam de acordo com o esperado; Além disso, requer pouco questionamento, uma certa maneira mecânica de ser e atuar, uma predisposição à obediência e à submissão; requer que as pessoas se individualizem e compitam entre elas; requer que se naturalize a idéia de exploração de outras pessoas e da natureza; requer a ausência de debate, de reflexão e de pensamento crítico.
Esse conjunto de requisitos que o paradigma neoliberal impõe ao campo educativo se articula a outro requisito estrutural: o encolhimento, tendendo ao aniquilamento, do setor público. Nesse cenário, em que prima o privado sobre o público, o individual sobre o coletivo, não há espaço para uma cidadania ativa e nem sequer para um horizonte de realização de direitos, mas apenas o estabelecimento de relações entre clientes e prestadores de serviços. É assim que vai desaparecendo a noção de Estado como garante de direitos, que deve prestar contas à cidadania, e se difunde, a partir da concepção de liberdade de escolha e satisfação do cliente, a idéia de que os serviços têm que prestar contas aos seus clientes. Na área educativa, a escola prestadora de serviço e as famílias clientes rompem a coluna vertebral da gestão democrática, da aliança e cooperação entre os três sujeitos principais da comunidade educativa: estudantes, profissionais da educação e famílias.
Por outro lado, o encolhimento do setor público vem acompanhado por uma intolerância ao debate e à participação social, de modo que vemos, em nosso continente, uma crescente criminalização dos movimentos sociais, e no que se refere ao campo educativo, de estudantes, professores e professoras.
As lutas dos movimentos sociais pelo direito à educação devem, portanto, situar-se e articular-se a lutas mais amplas, de democratização, de Estados como garantes de direitos, de mudanças profundas de paradigmas de viver, que tenham bases e que apontem a horizontes onde a humanidade dos seres humanos e sua dignidade estejam no centro e onde a educação seja meio e fim para isso. Zygmunt Bauman sublinha a importância da educação na construção de uma nova cidadania, o que implica em resistir à crescente individualização de nossa modernidade líquida[1], que aniquila o sentido do público e o reconhecimento das pessoas como sujeitos de direitos, dotados de poder e capazes de promover justiça.
As lutas coletivas de movimentos sociais e de redes de organizações que se articulam na defesa do respeito, proteção e realização do direito humano à educação têm sido absolutamente fundamentais em resistir e avançar nesse sentido. Todas as conquistas alcançadas em matéria de direitos humanos são fruto de lutas sociais que têm história. A ação coletiva que realizam esses movimentos e redes, sua maneira de agir a partir do debate, do diálogo, da articulação dos diferentes, da promoção do pensamento crítico, são em si mesmo o início do caminho para um paradigma alternativo ao que hoje se apresenta como hegemônico.
Recentemente, o mundo vem acompanhando as mobilizações estudantis de nossa região e especialmente as do Chile, que clamam pelo reconhecimento da educação como direito humano fundamental e do Estado como seu garante. Essas mobilizações ocuparam o espaço público com debate, com expressão e com cidadania ativa, assinalando que o espaço público deve ser recuperado, que as lutas por direitos e por democracia vão de mãos dadas, que o que é humano em nós não vai se entregar e que, mesmo em um cenário hostil, a resistência insiste e se impõe.
(*)Coordenadora Geral da CLADE e Presidenta da CME
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