terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Fritos, sujos e mal pagos

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Fritos, sujos e mal pagos

O calor em 2014 foi capaz de aquecer em mais de meio grau um caldeirão com 1,3 quatrilhão de litros de água. Estamos falando da superfície dos cinco oceanos.

por: Saul Leblon 

Arquivo

Quantas bombas nucleares seriam necessárias para elevar em meio grau  a temperatura  dos oceanos que  recobrem uma área equivalente a 71% da superfície da Terra?

Estamos falando de uma panela de água salgada com 357 milhões de km2, profundidade média de 3.870 metros (pode chegar a 11 quilômetros nos abismos, as fossas oceânicas).

Seja qual for a resposta, essa guerra já aconteceu.

No ano passado, a temperatura no planeta atingiu níveis sem precedentes nos registros  históricos desde 1880, coligidos pela agencia espacial norte-americana, a NASA.

Na superfície do mar ela ficou justamente 0,57%  grau acima da média do século passado.

Insista-se:  vivemos sob um bombardeio de calor capaz de aquecer em mais de meio grau um caldeirão com cerca de 1,3 quatrilhão de litros de água salgada.

Na terra, o aquecimento deu um salto ainda maior: um grau acima, na mesma base de comparação.

Um comunicado da direção do Instituto Goddard de Estudos Espaciais, vinculado à NASA, não deixa muitas dúvidas quanto a dimensão estrutural desse bombardeio sem estrondo,  por isso mesmo ainda mais ardiloso e fatal: ‘Este é o mais recente de uma série de anos quentes, de uma série de décadas quentes.  Se um ano isoladamente pode ser afetado por padrões climáticos caóticos, as tendências de longo prazo podem ser atribuídas à mudança climática, dominada, agora, pelas emissões humanas de gases do efeito estufa”.

A referência comparativa a 1880 ilude.

Na verdade, a água da panela sofreu seu principal processo de aquecimento em um intervalo de tempo mais curto e mais recente, evidenciando uma aceleração cumulativa do bombardeio metafórico. 

Se hoje a Terra está 0,8% mais quente do que em 1880, o fato é que o termômetro climático se mexeu com mais celeridade sobretudo nas últimas três décadas.

Com exceção de 1998, os 10 anos mais quentes de que se tem registro ocorreram depois de 2000.

 A espiral progressiva dá ao recorde de 2014 a dimensão de um alarme estridente que lideranças à direta  e à esquerda fingem não ouvir.

As bombas da insanidade sistêmica estão explodindo em velocidade cada vez maior na ‘panela’,  ainda que a percepção de quem está dentro seja vaga e episódica.

A referência ao sapo cozido em sua própria tolerância é conhecida mas válida: jogado em água fervente ele reage e salta em busca da vida; cozido em fogo baixo o distraído não reage ao martírio incremental, até que a água borbulhe a 100º.

Aí será tarde demais para saltar em busca da vida.

Os dados da equação climática sugerem que a humanidade aproxima-se dessa segunda hipótese no timmimg para refrear as causas do aquecimento global.

Não é força de expressão.

Os números da contagem progressiva oferecidos há poucos dias pela NASA sequer provocaram bocejos nos sapos dirigentes responsáveis pelo caldeirão em banho-maria avançado.

Tudo se passa como se o tempo fosse um aliado, quando a novidade é que deixou de sê-lo há centenas de folhas do calendário.

A sorte da humanidade equilibra-se em  uma estreita pinguela de uma  década e meia, se tanto, é o que já se disse mais de uma vez neste mesmo espaço.

Não é um exercício de alarmismo por tentativa e erro.

É o consenso, ou pelo menos a quase unanimidade do que enxerga a ciência.

Uma década e meia seria o tempo disponível para limar divergências, pactuar metas, dividir  cotas  e iniciar,  por volta de 2020,  um corte de 40% a 70% no volume de emissões de gases de efeito estufa, a ser concluído até 2050.

A base  de referência seriam as emissões de 2010.

Detalhe: aquilo que se preconiza como imperativo para as próximas três décadas destoa brutalmente da tendência registrada nas três anteriores.

As emissões no período recente, como reiterou a NASA no comunicado sobre o recorde de 2014, só fizeram crescer, em degraus robustos.

A redução heroica projetada agora marcaria a derradeira chance de se evitar que a temperatura média no planeta aumente mais de 2 graus Celsius até o final deste século.

Os pesquisadores –exceto a turma financiada pelo partido republicano dos EUA--   advertem que qualquer escorregão além disso adicionaria um roteador endiabrado à dinâmica dos eventos extremos, anulando o esforço de readaptação da atividade humana no planeta.

O sapo, então, mesmo consciente do fim, não teria mais alternativas, emparedado entre o caldeirão e a brasa.

No final de 2015, um novo protocolo do clima –em substituição ao falido ‘Kioto’-- será definido na reunião do IPCC, em Paris.

É justo nutrir esperanças de que alguma decisão relevante saia de um fórum dominado pelos mesmos interesses, a mesma lógica, responsáveis por terem jogado a humanidade no atual precipício entre a deflação recessiva e a estagnação secular?

Dito de outra forma: em um mundo submetido a forças que consideram irrelevante coordenar ações e expectativas para afrontar a natureza intrinsecamente desequilibrada dos mercados, que espaço existe para o planejamento global da equação climática?

Mais que a indiferença diante da fatalidade, a prostração revela que a resposta à encruzilhada ambiental transcende o ambientalismo.

Ressalvadas honrosas exceções, ao menos no Brasil, o ambientalismo  sempre resistiu em associar a sua luta à  superação da ordem econômica que está na raiz de seus desafios.

Guardadas as particularidades locais e individuais, tudo se passa como se a solução fosse extrair ‘água limpa da merda’ –sem alterar as bases da imensa cloaca sistêmica que devasta e empesteia os recursos que formam as bases da vida na Terra (leia ‘Extrair água da merda. Uma forma de erradicar a pobreza?’; nesta pág)

Exemplo dessa contradição é o ambientalismo cevado agora na alfafa chique das propostas do decrescimento econeoliberal.

O que temos aqui? Uma confortável simbiose entre arrocho fiscal e vapores sustentáveis. Ou seja, água da merda para os pobres; Perrier para as gargantas seletas.

A classe média semi-culta e semi-informada se inebria nas tertúlias na Casa do Saber, enquanto a operosa eficiência dos livres mercados acrescenta bombas de calor nos cinco oceanos.

Não vamos além da sorte do sapo por aí.

Neomalthusianos tingidos de verde deveriam admitir, a bem da verdade, que a bandeira do 'decrescimento’  já se encontra em vigor em sociedades díspares, da África subsaariana às economias europeias às voltas com fome,  deflação e desemprego, sob o torniquete de Merkel & FMI e interesses neocoloniais.

Os desdobramentos em marcha podem ser evocados como os albores de uma aurora sustentável?

A ascensão fulminante do Syriza numa Grécia espremida em um  torniquete mais devastador que o da Depressão  dos anos 30 nos EUA (conforme Joseph Stiglitz, no El Pais); assim como a liderança do Podemos, na Espanha –campeã europeia no quesito desigualdade (1% detém riqueza superior a dos 70% mais pobres) sugerem que não.

 Quase 1/3 da humanidade ainda depende da queima de lenha ou carvão (leia-se, derrubada de florestas) para preparar uma simples refeição.

Cerca de 850 milhões de seres humanos vivem no calabouço da fome crônica.
 
Outro tanto moureja a terra nua dispondo tão somente da força muscular para extrair seu sustento.

Mais decrescimento que isso?

Para escapar à lógica do fim do mundo  –se é que ainda há tempo—  é   preciso incorporar as circunstâncias da história realmente existente à equação sustentável.

Nas últimas décadas, a desregulação imposta a todos os níveis da atividade humana agravou os contornos da crise social e ambiental.

Se os fundos  especulativos conseguem dobrar o rendimento dos detentores da riqueza financeira em  prazos curtíssimos, todos os demais setores da economia capitalista terão que perseguir idêntica voragem. Do contrário, acionistas insaciáveis fritarão o fígado de gestores empedernidos numa grande fogueira de ações nas Bolsas de Valores.

A dominância financeira impõe há mais de 40 anos uma  aceleração predatória em todas as latitudes da terra e dos mares; do macro ao micro.

 Acelerar, no léxico dos mercados, significa desregular. O quê? Tudo: da proteção ao trabalho à exploração das riquezas naturais.

A turma do decrescimento  considera  ambientalmente indesejável  buscar o pleno emprego no século 21.

Topa uma reforma tributária capaz de tornar o emprego parcial  --ou até mesmo sazonal-- apenas uma das âncoras da sociedade regida pela universalização da cidadania plena?

Na verdade, Kalecki e Keynes, depois de Marx, já haviam farejado a implicância dos finos com uma situação de mercado de trabalho aquecido, capaz  de ampliar o poder de barganha da classe assalariada.

Ou não será o desmonte desses alicerces (fim do seguro desemprego, por exemplo) um dos motivos da satisfação dos endinheirados com a agenda Levy no Brasil?

A alavanca que move o jogo do fim do mundo  não é a dos direitos sociais –entre eles o direito ao emprego digno--  mas, sim, os direitos de saque sobre a riqueza disponível, exercido pela  papelaria  rentista, cujo montante supera US$ 600 trilhões: 10 vezes a soma do PIB planetário.

A impossibilidade física entre uma coisa e outra, entre os limites do planeta e a ganância rentista, esse o moinho satânico do nosso tempo.

 Nada disso isenta a negligência da esquerda diante do colapso que a reunião de dezembro em Paris prenuncia.

As linhas da urgência ambiental e a da prostração política  indicam que a batalha da mitigação, por ora,  foi perdida.

Resta saber se a esquerda será capaz de recuperar o tempo perdido para dar à humanidade uma segunda  chance, para além da sua metamorfose em um sapo cozido na desconcertante conivência com o caos.

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